O Dão segundo António Madeira

A opinião vinda de outro homem do Dão, que vive em França, e que arriscou fazer vinho na sua terra, paredes meias com a Serra da Estrela. Um testemunho desbragado, emotivo e sem meias palavras.

"O Dão, como região demarcada a mais de 100 anos, é das mais antigas e mais clássicas regiões portuguesas. São aqueles lugares que o Homem, desde há muito, reconheceu como sendo predilecto para a produção de vinhos. É, também e na minha opinião, uma região paradoxal, por duas razões: primeiro por ter algumas características de regiões, ou países, mais frias. Segundo, por se tratar de uma região com um enorme potencial para a produção de vinhos tintos e brancos, talvez o maior de Portugal, mas que teima ficar no escuro, longe dos holofotes, parecendo contentar-se com a mediocridade. A que se deve este segundo paradoxo? Reflecti muitas vezes sobre esta questão, e mesmo não tendo encontrado uma explicação definitiva, vou partilhar algumas conclusões, mesmo correndo o perigo de ferir susceptibilidades.
Possui enorme potencial graças à natureza, ao clima, solos e castas próprias. Um clima geralmente frio e chuvoso no Inverno, e quente no Verão com noites frias, essencial ao equilíbrio dos vinhos, que potenciam a acidez natural e a elegância. Os solos, geralmente graníticos, conferem mineralidade nos vinhos, caso o produtor procure verdadeiramente exprimir o seu terroir, não mascarando com maquilhagens e condutas “modernas”. São poucas as regiões reúnem estas duas condições em Portugal.


Além disto o Dão é das únicas (a única?) regiões em Portugal de que ainda se pode dizer que ficou imune à estupidez de plantar as castas da moda, as castas internacionais (Cabernet, Syrah, Merlots e afins...). Apesar da concentração da produção em apenas algumas castas, todas elas (Tinta Roriz à parte) são castas autóctones, preservando-se ainda assim alguma tipicidade, algum carácter próprio da região. Sendo que algumas delas apenas se encontram no Dão, caso do Encruzado ou do Jaen, a casta preferida dos pequenos lavradores e tão snobizada pelos produtores. As mais famosas e reconhecidas têm no Dão o seu berço, como a Touriga Nacional ou mesmo a bairradina Baga, cuja maior variabilidade genética se encontra no Dão.Com tantos trunfos, quase que parece fácil o Dão ter sucesso. No entanto está longe de o ter. Porquê? Estou, cada vez mais, convencido que a resposta se encontra nos homens e principalmente nas gentes do Dão, mas também no consumidor português.
O consumidor português, porque lhe faltam décadas de cultura vinica, porque foi massacrado intelectualmente por décadas de obscurantismo politico. O consumidor português, salvo felizes excepções, apenas procura preço, não procura expressão genuína.
Um terroir por si só, não chega. É preciso transmiti-lo nos vinhos, comunicá-lo, é preciso procurar a excelência nas praticas culturais, na vinha e na adega. E isso é o papel do produtor e da sua equipa, é a sua responsabilidade. E salvo algumas excepções, raramente se bebe ou prova um grande vinho do Dão. Prova-se, sim e cada vez mais, produtos estandardizados, das mesmas castas, de vinhas tão intoxicadas por herbicidas e produtos fito-sanitários que é necessário utilizar leveduras industriais na adega para se dar a fermentação alcoólica, perdendo-se assim a expressão das leveduras indígenas, as que vêm da vinha e que expressariam os aromas e sabores do terroir.
Provam-se vinhos cheios de intervenção enológica, de esteróides diversos, de práticas que são cópias de outras regiões e não a expressão da elegância e dos sabores do Dão. Porquê copiar o que outros fazem melhor que nós? É esse o caminho do sucesso? O caminho da afirmação do Dão?

Foto da autoria do António
Esta situação vem de longe. Depois de algum sucesso, o Dão conheceu um declínio que não acabava no caixão graças à coragem e visão de alguns produtores 30/20 anos atrás que tentaram lutar contra a corrente da vulgarização do Dão. Mas é preciso ir mais longe, muito mais longe, com práticas culturais respeitadoras do terroir, da natureza, da biodiversidade e finalmente do consumidor, proporcionando-lhe um produto genuíno, cheio de carácter.
Falta a cultura do vigneron, a cultura da pessoa que vive do vinho, que vive o seu terroir e que procura expressá-lo com rigor, procurando a excelência, com sabedoria e paixão.
Ao inverso, o que encontramos na maior parte dos casos, são pessoas que não vivem do vinho, que não vivem o vinho mas sim o encaram como mais uma oportunidade de negócio, como uma mercadoria como tantas outras.
É preciso união entre produtores, sinergias. Este é o principal ponto fraco da região. A sua gente não é unida, é sim individualista, com inveja do sucesso dos outros. Se puder cortar as pernas do seu vizinho, fá-lo sem qualquer escrúpulo. Assim não se vai a lado do nenhum. Com este tipo de mentalidade generalizada, nas gentes e produtores do Dão, é impossível a região afirmar-se, tanto a nível nacional e internacional. O futuro da região parece assim muito negro. No Douro, por exemplo, as gentes do vinho estão aparentemente mais unidas, e isso certamente tem contribuído para o seu recente sucesso. Uma velha máxima diz que a união faz a força, mas no Dão poucos, muitos poucos, a entendem. Este ponto é na minha opinião o verdadeiro cancro do Dão.

Foto da autoria do António
Para finalizar, só mais um exemplo do atraso de mentalidades que encontramos no Dão. Pessoalmente acredito que a sub-região Serra da Estrela se distingue do resto da região, que tem caracteristicas próprias, semelhantes às dos crus bordaleses ou borgonheses. Os vinhos são mais ácidos, mais austeros, mais elegantes do que, por exemplo, para os lados de Viseu. São vinhos mais aptos à guarda, mais adequados ao conceito de “Grands Crus”. Por isso acho que esta sub-região se deveria afirmar por si própria. Ora neste momento temos duas entraves a essa afirmação. Uma reside na CVR do Dão, a autoridade que supostamente deveria lutar e criar as condições para tal afirmação. Ora a CVR proíbe claramente os produtores de escrever nos rótulos a menção “Serra da Estrela” ou “Sub-região Serra da Estrela”. Um contra-senso não é? O outro entrave reside nos próprios produtores que não têm consciência do potencial que têm entre mãos, para não repetir, mais uma vez, a evidente desunião entre eles.
E por aqui fico, as perspectivas não são muito animadoras a curto ou médio prazo. Será que é preciso mais tempo (uma geração?) para que as mentalidades mudem e que, deste modo, o Dão possa finalmente afirmar-se?

By António Madeira autor do blog  A Palheira do Ti Zé Bicadas

Comentários

ajserodio@gmail.com disse…
Curioso que depois de todas as lamurias, correctas a meu ver, cai na sua própria critica. deveria ser separada a região da "Serra da Estrela". Não seria mais importante antes disso afirmar o Dão como um todo? abraço AJS
Antonio Madeira disse…
Obrigado pela pergunta.
Percebo que devo esclarecer a minha posição. O que defendo não é que a região "Serra da Estrela" deva ser separada do resto do Dão.
O que acho é que como aconteceu noutras regiões, o Dão no seu todo ganharia se os seus diversos "crus" fossem divulgados e valorizados.
Veja o facto de existir Pauillac, ST Emilion, etc.. é bom ou não para Bordeus no seu todo?
Eu acho que sim, tal como na Borgonha ou nas Côtes du Rhône. Veja o caso da Alsacia, mais de 50 grands crus...
No Minho, o facto de os vinhos de Monção e Melgaço têm ou não contribuido para o upgrade da reputação dos Vinhos Verdes no seu todo? Eu acho que sim.

O exemplo que dei sobre a sub-região Serra da Estrela servia sobretudo para explicar duas coisas :
1) que mesmo a uma pequena escala, muito mais reduzida do que a escala da região, os produtores eram incapazes de se unir, o que lamento e muito.
2) que as autoridades em vez de ajudar ao desenvolvimento, muitas vezes travam-no.

Como vê, o que defendo não é a divisão, mas sim a união.
AJS disse…
Caro António Madeira. Tem razão quanto a Bordeus ou ao Alvarinho, mas, no meu entender, a incompreensível razão do não reconhecimento junto dos consumidores mostra que o Dão tem ainda muito que trabalhar na sua afirmação que importa não estar a diversificar ainda. Quanto à falta de união não é infelizmente só no Dão. todas as outras regiões portuguesas sofrem um pouco desse mal. O mal português de que já o Camões se queixava. Abraço AJS
Pingus Vinicus disse…
Partilho da opinião que o Dão deve ser promovido como um todo, e independentemente de eventuais estilos, mas percebo o olhar do António, que tem a escola francesa, mas olhando para a dimensão portuguesa, não sei se alguma vez será possível.
Pedro Guimarães disse…
Caro António Madeira,

200% de acordo....as regiões portuguesas só tinham a ganhar com a valorização e identificação das diferentes especificidades dos seus terroirs (olhem só o que muitos países do novo mundo andam a fazer à pressa!!!!). Infelizmente acho que ainda não estamos para aí virados...e obviamente têm de ser os produtores a quererem viver as suas regiões desta forma e a perceberem que só têm a ganhar com a "caracterização" dos seus "terrenos"....

É realmente uma pena quando nós temos a matéria prima (uvas e terroir) para o fazermos...

Abraço e boa sorte