Entre o Inferno e o Céu

Desde que me conheço como individuo que percebi que os homens tendem a viver uma vida emparelhada entre o Inferno e o Céu.
A (im)possibilidade da existência destas duas realidades díspares, tem ao longo dos séculos, dos milénios, alimentado diversas teorias sobre os possíveis destinos que nós podemos ter, após a morte.
Confrontaram-me, desde puto, com a ideia que o Inferno era o local do sofrimento, da angústia, do desespero, da loucura, da dor vacilante. Das enternas filas de homens agrilhoados, encaminhando-se para a caldeira que se vai alimentando da carne. O Céu, pelo contrário, seria o cenário edílico, azul, com enormes prados. Cheio de abundância, de água fresca, e onde a dor seria apenas uma ténue lembrança de uma longíqua vida terrena. O local de todos os dignos, dos merecedores, dos eleitos.
Anos a fio, fui educado segundo estes dogmas. Autênticas cordas, que não deixavam respirar, pensar em liberdade. Não podia acreditar que tinha que viver preso a estes mundos. Sempre com o medo de ser castigado, de não ser um dos escolhidos. Arrisquei sair dessa vida castrante e ir à procura da (minha) verdade, daquilo que acho, que penso ser certo. Demanda infrutífera. Aqueles que continuaram a viver segundo a dualidade, parecem-me mais felizes, e em paz. Parecem seguros do destino que irão ter.

E os vinhos? Poderão prolongar o sofrimento do enófilo, mesmo depois de ter abandonado, deixado esta realidade? E aqueles que irão para o Céu estarão destinados a beber os melhores néctares, a deliciarem-se com os melhores sucos? Questões que me passaram pela cabeça enquanto andava de volta de dois vinhos da Quinta do Javali (Douro). Ainda olhei para o lado para ver se estavam, por ali, anjos ou diabretes. Mas não. Tudo simples mortais, como eu. O Reserva 2004 bem podia fazer parte da carta de vinhos dos condenados. Negro, opaco, escuro. Com sugestões químicas, metálico, ferroso. Muito extraído, onde um incomodativo aroma a pêlo de animal não me deixava em paz (teria um sátiro metido o seu dedinho?). Nota Pessoal: 12. No oposto estava o Grande Escolha 2004, misterioso, cativante, envolvente e muito desafiante. Colocava-me à prova, para saber se era digno dele. Fresco, mineral, repleto de brisas verdejantes e viçosas. Muita bergamota. Denso. Nota Pessoal: 17
Post Scriptum:
Caramba, é o que se costuma dizer: "Bem com Deus e com o Diabo." Tá certo. Mas eu não consigo. Vou tentar viver sempre com vinhos destinados ao Céu. Parece que na Terra, pelos vistos, fazem-se encomendas com sortes bem diferentes.

Comentários

Anónimo disse…
Tenho a certeza que há mais gente que vai para o inferno que bebe o nectar dos Deuses, do que própriamente os que vão para o céu. Contigências do capital...
Pingas no Copo disse…
Pedro, dizes uma grande verdade.
Ora se o dito Lucifer foi condenado a ser um anjo caído por ter desafiado as ordens de Deus... este mesmo cai do Céu para a Terra visto ter ficado sem asas, sendo que onde nós moramos e vivemos seja o dito Inferno, onde nós temos de sofrer as agruras da vida para ter um cantinho no Céu... onde temos as filas, onde sofremos por uma consulta médica, onde temos de provar pingas horrorosas ?
Anónimo disse…
De qualquer maneira é sempre de equacionar a hipotese de na falta de vinho Deus transformar a água. Por muito mau que seja, visto não se saber o terroir, o ano de colheita, ou as castas, sempre tem cor e gosto.
Isso costumam ser aquelas aguadas a que alguns chamam «vinho», curiosamente a ressaca no outro dia é tal que mais parece estarmos no dito inferno... :)
Anónimo disse…
Antes de tudo, condenar é pecado. As opiniões deveriam continuar a ser reconhecidamente subjectivas e jamais inquisitivas. Não se pode exigir a um vinho que seja elegante, quando o seu projecto possa ter tido como base uma estrutura férrea, onde estivesse assente uma massa bruta e extraída, que o tempo ajudará a "amansar". Há vinhos asssim ... Já "Pedro Sousa P.T. said...
Gosto de vinhos que não estão na moda." Será que em vez dos 5/10/15 minutos, o vinho estaria a pedir 30/40/50/+, só que ninguém o estaria a ouvir. A paciência tende a ser recompensadora ....
Pingas no Copo disse…
Caro Anónimo, por isso é que a paciência é um requisito para se entrar no Céu.
Presidente disse…
Já tive a oportunidade de beber os dois vinhos, e as minhas notas foram piores que as tuas, Rui. 10 ao reserva e 14 ao grande escolha.
Quanto ao Reserva, paciência tem limites, este não compro mais.
O grande escolha gostei muito do vinho, fresco, gastronómico.
Como é que a mesma casa faz coisas tão dispares?
Este volto a comprar de certeza.
Anónimo disse…
Caro anonymous, a moda pode ser muito subjectiva, ou até irónica. Quando digo que gosto de vinhos fora de moda, falo de vinhos bem encorpados a saber a iogurte de frutos silvestres, que penso que não estejam na moda. Lembro-me sempre da Quinta da Passarela, que Pingos fez o favor de nos dar a provar.
Anónimo disse…
Caros enófilos
consideraram a hipótese da garrafa ter defeito? Eu já provei o vinho e o que encontrei foram aromas a especiarias, ligeiro vegetal (talvez da Roriz?), fruta vermelha (framboesa, groselha).
Na minha opinião aromas animais(q.b.) não é defeito olhem para o caso do Mouchão.
Este vinho é um vinho tipico e tradicional do Douro, não é, como eu costumo dizer, de loja de perfumes...Será que os produtores fizeram o vinho direccionado para um determinado tipo de cliente???
Agora aromas a iogurte de frutos silvestres.....Convém relembrar que os aromas lácticos são defeito, muito mais num vinho tinto.

ARM
Pingas no Copo disse…
Caro ARM, por isso é que existem criticos e amadores, apaixonados, por aí fora...Pessoalmente gosto de falar abertamente sobre os vinhos, partilhar as minhas opiniões. Como já disse, a internet é capaz de ser a última fronteira da liberdade de expressão. Se a minha opinião está certa? Nem de longe, nem de perto...

Depois o momento da prova é um factor que pode determinar muitas coisas. Mas será que os criticos, os profissionais não serão afectados?

Fala se a garrafa não poderia ter defeito? Claro que podia, claro que podia. Aliás, provavelmente devo ter gostado de muitos vinhos com defeito. :)

Cumprimentos cordiais
Anónimo disse…
Para a primeira parte do texto: sugiro a leitura do poema "Queixa das almas jovens censuradas" da Natália Correia. Se bem que se refere à juventude agrilhoada do tempo do salazarismo, não deixa de ser um poema de uma imensa beleza. O José Mário Branco tem uma notabilíssima versão musical.
Para a segunda parte: bergamota? Lembra-me a tal história do desaparecimento de termos e o surgimento de outros que entram em moda, tipo: antigamente dizia-se, por exemplo "aveludado", agora usa-se dizer alcaçus e pelos vistos bergamota. Riquezas da língua...
Pingas no Copo disse…
Ainda bem que o português permite que se use um quantidade assinalável de substantivos, de verbos, de adjectivos.

Depois é só colocar a imaginação a funcionar. Ainda bem que assim é (pelo menos para mim, é claro).
Anónimo disse…
Tudo bem, enquanto a imaginação for saudável e racional. Mas o mesmo não será defensável quando se chega ao ponto de afirmar:"fazer parte da carta de vinhos dos condenados". Reparem e e analisem: "Vinho para os condenados (atenção, são seres humanos)" ou "Vinho condenado"? A língua portuguesa tem destas coisas ... Anónimo A
Pingas no Copo disse…
Tudo bem, isso mesmo enquanto a imaginação for saudavel! Quando a imaginação começar a ser "muito racional" deixa de ter graça. Temos que ser todos politicamente correctos.
Acima de tudo penso que se deve respeitar a opinião de quem prova e obviamente, tem a coragem para tornar pública a sua opinião, neste caso em forma de Pingas no Copo.

Quanto aos termos utilizados podem variar tanto como a opinião diferente de duas pessoas, mas o que interessa é que se entende perfeitamente o que se quer dizer... se não se entender o problema então será outro :)