Vinha Othon

Foi difícil, exageradamente difícil. Fazia tempo que as palavras não custavam a sair. Risquei inúmeras vezes, amachuquei várias folhas e nada. Tudo saía falso, inócuo e sem sentido. Os verbos e adjectivos soavam mal. A reprodução das sensações estavam completamente vazias de emoção. Caneta, papel e vinho estavam distantes. A cada gole que dava as imagens tendiam a turvar. Sinais de demência?
Após cada cheiradela, ao fim de cada trago, aumentava a angústia. Que era aquilo? O que tinha ali? Um tinto demasiado prudente que se acercava de forma discreta, quase religiosa. Os sentidos eram embalados por uma suavidade que entorpecia. Queria escrever, queria fazer comparações. Esforcei-me para apanhar flores (tinha visto o contra-rótulo), fiz diligências para encontrar qualquer coisa. A fruta estava estupidamente fresca. A madeira colocada no devido lugar. Sem ordem para exibições pretensamente modernas. A acidez e os taninos envolviam-se num alucinante jogo de sensações. Estava tudo colocado de forma proporcional.
Voltaram as indefinições, regressaram as debilidades do homem (as minhas). Ensarilhei-me nas redes da (minha) obscura memória. Vi, olhos nos olhos, a dificuldade para libertar-me do que li, do que ouvi. Estava irremediavelmente influenciado. Que fraco (sou). Maldita a hora que bebi com o rótulo à vista desarmada.
Virei-me para o lado. A garrafa ia a meio e os olhos de um gato espreitavam sorrateiramente para a cena. No dia seguinte, um célebre homem iria fazer anos. Nota Pessoal: 17,5

Comentários

Anónimo disse…
Confesso que não percebi nada da sua crítica, mas transmitiu-me um sentimento de grande desejo de beber uma das garrafas que já comprei. O sentir do prazer foi inteiramente transmitido.
Cumps.
JFreitas
Pingas no Copo disse…
Confesso-lhe que também eu não percebi nada enquanto o fui bebendo. :)
No entanto, no entanto, ficou claro (penso eu) a enorme dificuldade que tive na análise do vinho. Como deve ter percebido, o enfoque estava, eventualmente, ligado à presumível influência que sofremos com o que ouvimos.
Quando gostamos de um vinho não precisamos de ser claros naquilo que dizemos. Aliás, os vinhos que me deram mais prazer foram aqueles que mais dificuldade tive em descrever. Quase que me atreveria a dizer que foram os momentos mais angustiantes.

Depois e muito depois, nunca olhe para o que escrevo como uma tradicional nota de prova (tento fugir a sete pés desta ideia). Tento, e é função primordial - nem sempre conseguida, exercitar a lingua materna. Nada mais.
Quando o desejo se transforma em angústia é sinal de quem em vez de se provar se deve simplesmente beber.
PAULO SOUSA disse…
E a rolha também vinha com a inscrição "Vinha Paz"?
Anónimo disse…
Caro Pingus
De facto ficou clara a dificuldade que tiveste em analisar o vinho e a provável correlação com o que foi lido e ouvido, sobre o mesmo.
Parece-me no entanto que é uma situação perfeitamente natural.
Ninguém se consegue abstrair de todos as variáveis que podem influênciar a análise degustativa de um vinho; Ainda bem que assim é. De outro modo seria um produto sem vida, sem história e sem interesse.
Fiquei com a noção que essas dificuldades passaram acima de tudo pela análisa aromática e pela "obscuridade" instantânia diante de outros registos/sensações gravadas na memória. Sei bem como valorizas estas "coisas" do nariz :)
Uma última questão. Também foi angustiante quantificar o vinho ou isso saiu naturalmente?
Pingas no Copo disse…
A quantificação, é como deves saber, um acto de enorme subjectividade (mesmo que digamos o contrário) e como sabes perdemos minutos a pensar se o vinho vale mais (ou menos) 1 valor ou vale apenas mais (ou menos) 0,5. Eventualmente do ponto de vista estatístico a diferença é irrelevante.

É um problema que não consigo dar volta. Aliás, será que alguém consegue?
Anónimo disse…
Colocaste a questão da quantificação de forma genérica.

O que eu queria saber é se, neste caso particular, a agustia se prolongou até à altura da quantificação, uma vez que esta também faz parte da prova.
A dificulade de clarificação/ interpretação do vinho condicionou a nota ou ela foi relativamente directa.

Se tivesses feito primeiro, por curiosidade, a prova degustativa(do que a aromática)podia ter sido diferente?
Pingas no Copo disse…
Parece-me que neste caso a prova gustativa tornou-se a grande surpresa para mim. Um vinho que na boca revelou um comportamento muito interessante.

Mas a questão da quantificação aplica-se também. Será que mais ou menos nota, ela revela a realidade do vinho?
Anónimo disse…
Revela alguma coisa tendo em conta a tua escala de pontuação/valorização do vinho.

Se não, para que é que quantificas? Deixavas apenas a tua nota qualitativa. Não concordas?
Anónimo disse…
Não chegaste a esponder ao Paulo Sousa...
Pingas no Copo disse…
Respondendo ao Paulo Sousa, não me lembro da Rolha. Sorry Aliás, e por desleixo pessoal, não ligo muito ao que as rolhas costumam dizer.

Caro Fisiopraxis, todos nós temos que ter um ponto de referência.
PAULO SOUSA disse…
A dita cuja(rolha)do meu amigo António Amaro,vinha com a seguinte inscrição:Vinha Paz.
Para um vinho que pretende ser o topo de gama desta casa,julgo que deveria existir mais cuidado...Mas o que realmente interessa é o vinho.


Um abraço
Luis Prata disse…
Caro Pingus,

Eu que já leio aqui os belos textos há algum tempo, noto uma escrita um pouco diferente, mais arriscada e sem perder nenhuma da sua pureza.

Acho que os textos se estão a tornar ainda mais interessantes. Parabéns por isso, gosto muito.

Abraço e boas provas ;)
Pingas no Copo disse…
Pratas, espero acima de tudo não perder pureza!

Um abraço amigo